Caderneta
Vermelha

"Honra
a teu pai e a tua mãe, para que se
prolonguem os teus dias na terra que o Senhor
teu Deus te dá." Êxodo
20:12
O carteiro
estendeu o telegrama. José Roberto
não agradeceu e enquanto abria o
envelope, uma profunda ruga sulcou-lhe a
testa. Uma expressão mais de surpresa
do que de dor tomou-lhe conta do rosto.
Palavras breves e incisas:
- Seu pai
faleceu. Enterro 18horas. Mamãe.
Jose Roberto
continuou parado, olhando para o vazio.
Nenhuma lágrima lhe veio aos olhos
nenhum aperto no coração.
Nada! Era como se houvesse morrido um estranho.
Por que nada sentia pela morte do velho?
Com um turbilhão de pensamentos confundido-o,
avisou a esposa, tomou o ônibus e
se foi, vencendo os silenciosos quilômetros
de estrada enquanto a cabeça girava
a mil.
No íntimo,
não queria ir ao funeral e, se estava
indo era apenas para que a mãe não
ficasse mais amargurada. Ela sabia que pai
e filho não se davam bem. A coisa
havia chegado ao final no dia em que, depois
de mais uma chuva de acusações,
José Roberto havia feito as malas
e partido prometendo nunca mais botar os
pés naquela casa.
Um emprego
razoável, casamento, telefonemas
à mãe pelo Natal, Ano Novo
ou Páscoa... Ele havia se desligado
da família não pensava no
pai e a última coisa na vida que
desejava na vida era ser parecido com ele.
O velório:
Poucas pessoas. A mãe está
lá, pálida, gelada, chorosa.
Quando reviu o filho, as lágrimas
correram silenciosas, foi um abraço
de desesperado silêncio. Depois, ele
viu o corpo sereno envolto por um lençol
de rosas vermelho - como as que o pai gostava
de cultivar. José Roberto não
verteu uma única lágrima,
o coração não pedia.
Era como estar diante de um desconhecido,
um estranho, um...
O funeral:
O sabiá cantando, o sol se pondo.
Ele ficou em casa com a mãe até
a noite, beijou-a e prometeu que voltaria
trazendo netos e esposa para conhecê-la.
Agora, ele poderia voltar à casa,
porque aquele que não o amava, não
estava mais lá para dar-lhe conselhos
ácidos nem para criticá-lo.
Na hora da despedida a mãe colocou-lhe
algo pequeno e retangular na mão:
- Há
mais tempo você poderia ter recebido
isto - disse. Mas, infelizmente só
depois que ele se foi eu encontrei entre
os guardados mais importantes... Foi um
gesto mecânico que, minutos depois
de começar a viagem, meteu a não
no bolso e sentiu o presente. O foco mortiço
da luz do bagageiro revelou uma pequena
caderneta de capa vermelha. Abriu-a curioso.
Páginas amareladas. Na primeira,
no alto, reconheceu a caligrafia firme do
pai:
"Nasceu
hoje o José Roberto. Quase quatro
quilos! O meu primeiro filho, um garotão!
Estou orgulhoso de ser o pai daquele que
será a minha continuação
na Terra!"
À
medida que folheava, devorando cada anotação,
sentia um aperto na boca do estomago, mistura
de dor e perplexidade, pois as imagens do
passado ressurgiram firmes e atrevidas como
se acabassem de acontecer!
"Hoje,
meu filho foi para escola. Está um
homenzinho! Quando eu o vi de uniforme,
fiquei emocionado e desejei-lhe um futuro
cheio de sabedoria. A vida dele será
diferente da minha, que não pude
estudar por ter sido obrigado a ajudar meu
pai. Mas para meu filho desejo o melhor.
Não permitirei que a vida o castigue"
Outra página:
"Roberto me pediu uma bicicleta, meu
salário não dá, mas
ele merece porque é estudioso e esforçado.
Fiz um empréstimo que espero pagar
com horas extras"·
José Roberto mordeu os lábios.
Lembrava-se da sua intolerância, das
brigas feitas para ganhar a sonhada bicicleta.
Se todos os amigos ricos tinham uma, por
que ele também não poderia
ter a sua? E quando, no dia do aniversário,
a havia recebido, tinha corrido aos braços
da mãe sem sequer olhar para o pai.
Ora, o "velho" vivia mal-humorado,
queixando-se do cansaço, tinha os
olhos sempre vermelhos... e José
Roberto detestava aqueles olhos injetados
sem jamais haver suspeitado que eram de
trabalhar até a meia-noite para pagar
a bicicleta...!
"Hoje
fui obrigado a levantar a mão contra
meu filho! Preferia que ela tivesse sido
cortada, mas fui preciso tentar chamá-lo
á razão, José Roberto
anda em más companhias, tem vergonha
da pobreza dos pais e, se não disciplinar
amanhã será um marginal. Foi
assim que aprendi a ser um homem honrado
e esse é o único modo que
sei de ensiná-lo"·
José
Roberto fechou os olhos e viu toda a cena
quando por causa de uma bebedeira, tinha
ido para a cadeia e naquela noite, se o
pai não tivesse aparecido para impedi-lo
de ir ao baile com os amigos... Lembrava-se
apenas do automóvel retorcido e manchado
de sangue que tinha batido contra uma árvore...
Parecia ouvir sinos, o choro da cidade inteira
enquanto quatro caixões seguiam lugubremente
para o cemitério. As páginas
se sucediam com ora curtas, ora longas anotações,
cheias das respostas que revelam o quanto,
em silêncio e amargura, o pai o havia
amado.
O "velho"
escrevia de madrugada. Momento da solidão,
num grito de silêncio, porque era
desse jeito que ele era, ninguém
o havia ensinado a chorar e a dividir suas
dores, o mundo esperava que fosse durão
para que não o julgassem nem fraco
e nem covarde. E, no entanto, agora José
Roberto estava tendo a prova que, debaixo
daquela fachada de fortaleza havia um coração
tão terno e cheio de amor
A ultima
pagina. Aquela do dia em que ele havia partido:
"Deus,
o que fiz de errado para meu filho me odiar
tanto? Por que sou considerado culpado,
se nada fiz, senão tentar transformá-lo
em um homem de bem? Meu Deus, não
permita que esta injustiça me atormente
para sempre. Que um dia ele possa me compreender
e perdoar por eu não ter sabido ser
o pai que ele merecia ter".
Depois não
havia mais anotações e as
folhas em branco davam a idéia de
que o pai tinha morrido naquele momento,
José Roberto fechou depressa a caderneta,
o peito doía. O coração
parecia haver crescido tanto, que lutava
para escapar pela boca. Nem viu o ônibus
entrar na rodoviária, levantou aflito
e saiu quase correndo porque precisava de
ar puro para respirar. Para ele, os pais
eram descartáveis e sem valor como
as embalagens que são atiradas ao
lixo. Afinal, naqueles dias de pouca reflexão
tudo era juventude, saúde, beleza,
musica, cor, alegria, despreocupação,
vaidade. Não era ele um semideus?
Agora, porém,
o tempo o havia envelhecido, fatigado e
também tornado pai aquele falso herói.
De repente. No jogo da vida, ele era o pai
e seus atuais contestadores.
Como não
havia pensado nisso antes?
Certamente
por não ter tempo, pois andava muito
ocupado com os negócios, a luta pela
sobrevivência, a sede de passar fins
de semana longe da cidade grande, a vontade
de mergulhar no silêncio sem precisar
dialogar com os filhos.
De repente.
No jogo da vida, ele era o pai e seus atuais
contestadores. Como não havia pensado
nisso antes? Certamente por não ter
tempo, pois andava muito ocupado com os
negócios, a luta pela sobrevivência,
a sede de passar fins de semana longe da
cidade grande, à vontade de mergulhar
no silêncio sem precisar dialogar
com os filhos. Ele jamais tivera a idéia
de comprar uma cadernetinha de capa vermelha
para anotar uma a frase sobre seus herdeiros,
jamais lhe havia passado pela cabeça
escrever que tinha orgulho daqueles que
continuam o seu nome. Justamente ele, que
se considerava o mais completo pai da Terra?
Uma onda
de vergonha quase o prostrou por terra numa
derradeira lição de humildade.
Quis gritar, erguer procurando agarrar o
velho para sacudi-lo e abraçá-lo,
encontrou apenas o vazio. Havia uma raquítica
rosa vermelha num galho no jardim de uma
casa, o sol acabava de nascer. Então,
José Roberto acariciou as pétalas
e lembrou-se da mãozona do pai podando,
adubando e cuidando com amor. Por que nunca
tinha percebido tudo aquilo antes?
Uma lágrima brotou como o orvalho,
e erguendo os olhos para o céu dourado,
de repente, sorriu e desabafou-se numa confissão
aliviadora:
- "Se
Deus me mandasse escolher, eu juro que não
queria ter tido outro pai que não
fosse meu querido pai! Me perdoe Deus, por
haver sido tão cego..."
E
você o que pensa de seu pai?

Autor:
desconhecido
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